quinta-feira, 16 de outubro de 2025

ESCAMAS QUEBRARAM AS MINHAS VIDRAÇAS

"Eu sou trovão, Tu tempestade, Entre nós dois: Pura eletricidade”.
Um peixe atravessou a janela da minha casa. Ela estava fechada, embora sua cortina azul vibrante anunciasse, de modo não muito efusivo ou confiante, que havia espaço na antesala do meu peito. Acho que sequer eu sabia: ela estava plena de poltronas reclináveis, tinha um sofá de quatro lugares que se abria para acolher um tipo de casal que, como disse Drummond, brinca e namora a qualquer hora do dia. Também jazia, no canto esquerdo, um almofadão recheado com flocos de isopor, bem embaixo do quadro que comprei em Cuzco, após percorrer a trilha inca com ar rarefeito sob meus pés. Ali é possível depositar todo o peso da humanidade que não sei se carregamos mais sobre o ombro no lado direito do corpo ou do seu lado esquerdo, dentro desse músculo involuntário que sempre pulsa, por mais desesperançosos estejamos. No centro do recinto, bordado pelo meu tio mais querido, um grande tapete de tapeçaria estava posto no aguardo de arroubos de desejos vorazes e explícitos.
Claro, um bom observador notaria que a porta estava fechada, mas por um ato inconsciente. Não só estavam expostas plantas sobre o seu parapeito, como viam-se vários vasos no chão, apoiados sobre uma torta táboa de madeira. E para dar um toque mais sutil e despretencioso, entre eles podiam ser vistas várias flores esparramadas ao acaso, avisando que a vida é breve, é breve como a existência das pétalas, mas igualmente frágil se soubermos fazer a correta avaliação comparativa. As plantinhas dos vasos se resignavam a esperar que a água da chuva rara do sertão saciassem sua sede de vida, mas estavam alí dispostas, bem no fundo, aguardando a aparição de uma mão generosa, de uma mão amiga, amorosa. A residente dizia-se desesperançosa, mas os cuidados ou descuidos com a sua moradia, em atos-falhos, denunciam que o seu discurso não estava assim tão percentualmente assegurado.
Sim, o peixe me invadiu antes que eu abrisse a porta ao convidá-lo a escalar os sete degraus da entrada. Ele foi manso, mas determinado. Mandou uma espécie de Hermes ou Exu, não estou segura, a enviar poesia com a insinuação de que desejava conhecer o seu interior. Mas depois, mudou de estratégia e foi direto: atravessou a janela sem que eu me apercebesse, estraçalhou meus medos e arremessou meu espanto para ao alto. Como isso se deu, eu não sei, não tenho ideia, sequer suponho. Só sei que, quando dei por mim, ele estava em minha cama, já sob o meu edredon mais acolchoado com estampas semelhentes em seus dois lados (aquele de fundo azul com flores amarelas e avesso com fundo amarelo e sob flores azuis), em perfeita simetria a anunciar que a vida pode ser equilibrada e calma. E o maior dos espantos é que ele estava nu, oferecia-se a mim sem escamas, sem guelras, sem dentes afiados de piranha, sem eletricidade no corpo, pois a eletricidade que ele gera e fornece é de domínio público e sem qualquer cobrança é constituída por matéria desconhecida da física quântica. Em pouco anos, ele entrou pela janela e colocou dois girinos em meu virgem ventre e esse tem sido o cardume em maior risco de extinção sobre o qual já li ou ouvi falar, que senti na minha epiderme já idosa e que os meus olhos arregalados já vislumbraram.
Entrou em minha casa um peixe que trouxe mais do que a água doce, que nos mantém hidratados e saciados daquela salgada que mantém o nosso alimento limpo e agradável ao paladar. Entrou trazendo rio, mar e nos fez navegar até esse céu que nos habita há quase quatro décadas.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

MEMÓRIAS DE UMA PROFESSORINHA OU NA ESTANTE DE PANDORA

NA ESTANTE DE PANDORA Vera Passos Coqueiro Fui professora por 26 anos. Ensinei Matemática para adolescentes. Digo que garanti minha rede sob Coqueiro na praia VIP do céu! O carma foi tanto, que ensinei por dois anos a uma Ivete Sangalo adolescente e ainda mais rebelde! Comecei muito jovem e chegava em casa aos prantos, porque entendia a rejeição à disciplina como à jovem inexperiente que eu era. Na verdade, fui pra Matemática pra sofrer, para me conectar com o meu pai depressivo falecido tragicamente pouco antes, pra viver do outro lado a minha sensação de incapacidade, enquanto aluna. Eu tinha muito gosto e facilidade por Português e outras línguas, mas ao começar a gostar dos números e formas, já no pré-vestibular, me senti tão poderosa e fascinada, que mergulhei de cabeça em um mar totalmente escuro e desconhecido. Sofri muito, sofri demais, mas busquei corrigir isso. Fiz parte do movimento que criou a SBEM - Sociedade Brasileira de Educação Matemática, cujo propósito era/é tornar seu ensino mais lúdico e atrelado à realidade. Demorou, mas consegui. No percurso, criei jogos, li poesias em aula, falei do I Ching, li contos e crônicas de A.C. Clark e Jô Soares, incentivei a cooperação e o processo ensino-aprendizagem em grupo, inventei novas formas de avaliação, na qual a métrica deveria ser eles próprios, seus avanços e não aqueles do colega ao lado, centrei minha ênfase na correção do erro, na consciência e melhoria de si e não na exposição dos que falham e até fiz meditação para que os estudantes relaxassem antes das provas e se visualizassem saindo delas com a sensação de que tinham feito o que de melhor poderiam (já bem próximo à aposentadoria, descobri que isso existia na França: RYE – Rechèrche sur le Yoga dans l’Education). Continuei até depois que fui considerada a professora mais criativa da Escola Técnica Federal da Bahia. Todavia, no meio do caminho, havia uma pedra, pedregulhos na verdade, a do desejo e do “talento” natural. Havia as sílabas! Com o dobro da idade, fiz vestibular pra Letras e cursei, enquanto ensinava carga horária completa de Matemática, cuidava de um menino de 3 anos e paria uma menina. Não nego minha trajetória, ao contrário, tenho orgulho dela – apenas lamento ela ter sido tão sofrida. Parodiando Gil: “A Matemática me deu régua e compasso”! Hoje, aposentada há 13 anos, estou publicando meu 6⁰ livro individual e escrevendo doze outros de diferentes gêneros, linguagens e formas! Entre eles um terá o título “A Professorinha”, expressão com a qual fui tratada aos berros por um homem engenheiro não licenciado, enquanto este me expulsava da minha própria sala de aula na frente de seus alunos e dos MEUS”! Engoli as lágrimas, disse aos estudantes que tomaria providências e saí para uma Assembleia que estava acontecendo no Auditório da Instituição, hoje o Instituto Federal da Bahia. O Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação - SINASEFE vivia seus primeiros dias e só cerca de nove educadores estavam presentes. Ainda assim, não tive coragem de relatar o ocorrido e hoje, quase 40 anos depois, ainda me faço as perguntas: O que eles teriam feito? Nada, já por verificarem que eu era uma jovem professora substituta? Ou se levantariam para me acompanhar em um confronto com o assediador? O fato é que à época essa palavra sequer existia. A relação entre palavras e experiências, senão biunívoca, é dialética: muda a realidade, mudam as palavras; mudam os fatos, cria-se neologismos ou atualiza-se antigas palavras para nomeá-los; muda-se a dinâmica social, passa-se a trocar as palavras escolhendo outras que traduzem melhor os novos estudos sociológicos, seleciona-se aquelas que são mais fiéis à nova dinâmica e descarta-se aquelas já rotas pelo mal uso, as mau ditas; atualizam-se mutuamente as trajetórias da história dos acontecimentos e da linguagem e até inventa-se novas palavras para que sejam as foices a forjarem novas utopias. No dia de hoje, 15 de outubro, Dia do Professor, me vêm à mente muitas histórias, porém raramente gosto das inúmeras homenagens que recebo. Elas falseiam a valorização de uma das profissões com menor prestígio social, não só por conta da sua origem clerical, mas, acredito eu, mais ainda, pelo fato dela ser exercida majoritariamente por mulheres, por “mulherzinhas”, diria o “meu ex-colega"! Quando sua nova mulher passou a ensinar lá, eu a cumprimentava pelos corredores me indagando como ele a tratava. Eu sentia pena dela, e ele morreu sem que eu tivesse lhe feito qualquer questão... As homenagens verdadeiras são muito parcas e se dão quando algum ex-aluno te reconhece e lembra de qualquer fato que foi exemplar em sua trajetória pessoal ou profissional, por mais bobo que seja o assunto. E vocês riem juntos e entendem melhor o que foram à época e a despedida é um abraço de gratidão pelo que conseguiram ser e pela lição de saberem terem sido mais do que imaginavam. No entanto, somos operárias que, como a maioria, não têm poder aquisitivo pra comprar muita das coisas que foram fruto do nosso labor, que além disso, têm o agravante de sequer verem o produto resultante do seu ofício, pela óbvia razão de não estarmos na ponta final da “linha de produção”, mas no seu início. O fato é que, aberta a caixa de Pandora de textos, tenho esperança de que até ela voe, voe na melhor forma possível, nas asas de livro!

sábado, 8 de março de 2025

DIA 8 DE MARÇO OU DIA DO CANSAÇO

Nada contra receber flores e cartões elogiosos de felicitações. Tudo contra o fato de que o dia das mulheres seja traduzido e festejado dessa maneira. Contra constantemente me lembrarem do quão guerreira sou. Preciso ser, dentre outras coisas, para encarar, cotidianamente, manifestações machistas. Não quero precisar responder a todas elas, não suporto ter que me manifestar contra elas todas as vezes em que sou desrespeitada. Em um dado momento só fico triste, em nada contribuo para que a outra pessoa se perceba preconceituosa e, quem sabe, repense sua conduta nessa sociedade onde o patriarcado parece o ar que se respira desde o surgimento da vida no planeta. Que nos cabe, para não morrer asfixiadas, respirar o machismo nosso de cada dia. Não é preciso dar exemplos, bem sei, mas o faço, talvez para que não me esqueça dessas situações e de que tive disposição e coragem para me manifestar a respeito, para não me curvar e expor melhor o lombo à chicotada. Mas então, vamos lá. Ouvi gritos de 4 homens nesses últimos 15 dias: Um deles gritou me mandando voltar para casa. Era um cambista que me oferecia seus ingressos pelo dobro do preço, a quem eu ousei responder: "Deus me livre!" Possivelmente eu deveria dizer: "Só isso? Desculpe-me senhor, mas não tenho condições de comprar o ingresso que você oferece". Eu me voltei e gritei dizendo que ele não me conhecia, que me devia respeito, que eu ia pra onde quisesse e apontei o carro da polícia próxima a nós. Claro que eu tinha conhecimento de que os policiais iriam rir, me ridicularizar e até intimidar se os procurasse. Assim fizeram em uma ocasião em que chamei os policiais, quando estava sendo agredida por ter entrado em defesa de uma moça negra e humilde que estava sendo desrespeitada por um homem branco, rico e arrogante. O segundo exemplo foi de outro senhor que passava uma quantidade enorme de compras em um caixa onde só era permitida a compre de 30 itens. Quando reclamei, esse me respondeu que estava pagando, que fazia o que queria e que eu me calasse. Obviamente, revoltada, lhe disse que eu não iria me calar, mas confesso que, pela sua agressividade, temi receber um soco na cara. O terceiro foi um guardador que me chamou a ocupar uma vaga e depois me cobrou o estacionamento antecipadamente. Eu lhe disse que nunca fazia isso e que pagaria no retorno. Ele respondeu: “É, eu tenho que confiar em você e você não pode confiar em mim”! Sabemos que, na minha volta, o meu carro estaria lá, mas ele poderia estar ou não. "Vá então pra zona azul", disse ele. Afirmei: "Vou sim, sem problemas"! (e veja que sempre dou preferência a estacionar em uma vaga onde o pagamento não vai pra prefeitura, mas pra quem está trabalhando no local). Porém, achei que não devia voltar ao carro e estacionar mais á frente, fazendo exatamente o que ele mandou. Como insistisse nesse discurso, terminei usando o argumento que detesto: a rua é pública, então posso estacionar nela quando desejar. Ele continuou retrucando, enquanto eu saía. Na volta, já temendo o encontro com ele, confesso que temi ver o meu carro arranhado ou com os pneus furados. Mas verifiquei que estava no mesmo estado. No entanto, como previ, ele já não estava lá. O último foi de um atendente de uma loja na qual compro regularmente há anos. É um ótica pequena em que atendem ele e sua mãe. A data de entrega dos meus óculos já tinha expirado há tempos, eu já tinha ido várias vezes lá sem sucesso e, em duas dessas vezes ele tomou o meu endereço garantindo que entregaria a mercadoria no mesmo dia. Quando lhes disse que me aborrecia a demora tão longa, que eu já tinha ido lá inúmeras vezes, ele começou a gritar: “Se o laboratório não entrega, eu não posso fazer nada!”. Lembrei-me de que em uma das vezes anteriores eu tinha respondido que, se o laboratório não cumpre os prazos, seria melhor eles trabalharem com outros profissionais. Como ele continuasse aos berros, eu lhe disse que observasse a diferença entre o meu tom de voz e o dele. Depois lhe falei que baixasse o tom de voz comigo. Como ele continuou, eu passei a repetir: “Eu não ouço grito de meu marido, não vou ouvir de você!”. Foi aí que sua mãe veio botar panos quentes, me pedir desculpas, dizer que ele estava nervoso etc etc. Saí pensando na minha resposta. Será que não havia uma admissão de que eu poderia sim ouvir gritos do meu marido, pelo simples fato dele ter esse status? Cheguei â conclusão de que não. Não só porque este nunca me gritou, mas também por o amar profundamente e saber que é um dos homens menos machistas que conheço. Sendo assim, seria mais tolerável aceitar as suas desculpas se o fizesse. Mas as coisas não são simples assim. Ainda hoje precisei observar o machismo nele! Vejam como começou o meu dia 8 de março: quando tomávamos nosso café, eu lhe disse que bebesse da água que estava nas garrafas na geladeira, porque eu decidira utilizar o restante de um botijão de água mineral que sobrara de nossa viagem no carnaval. Ele reclamou dizendo que eu deveria ter deixado lá no garrafão, já aberto. Foi quando lhe informei que água parada assim estraga e que eu tinha feito isso para não perdermos a água, esse bem tão valioso. Ele disse que eu estava enganada. Eu poderia até lembra-lo das pesquisas de Pasteur, mas não o fiz. Ao contrário, aromatizei a água com limão e hortelã e lhe perguntei se estava satisfeito. Daí, subi para reescrever um texto e fui surpreendida por ele, dizendo que havia consultado o Google e visto que em água mineral não havia cloro, por isso ela estava mais susceptível a estragar. Eu retruquei: "Não lhe disse"? Ele justificou sua atitude por reconhecer o erro (como se isso fosse um grande e difícil ato), falou algumas bobagens e encerrou a conversa dizendo: "Viu? Aprenda!" e quase bateu em retirada. Essa última história me parece bastante emblemática. Primeiro porque se passou em minha casa e o protagonista foi um exemplar bem melhorado dos homens, exatamente aquele que escolhi muito cuidadosamente para me casar. Observemos: - Não era preciso dizer que pedir desculpas é algo nobre, porque essa é justamente uma das atitudes que fazemos em excesso, ensinadas que fomos a de achar que quase tudo é de nossa, senão culpa, responsabilidade, - As falas das mulheres são postas em dúvida com maior frequência; - Ele tentou encerrar uma conversa me ensinando o que já sei. Claro que eu lhe chamei de volta pra mostrar o que acabara de fazer, ao que ele não respondeu com a admissão de uma conduta autoritária, mas com um sorriso que interpreto como: “Isso é engraçado”. Há um ponto ainda importante relacionado ao tratamento machista que recebi no início do dia de hoje. Depois do ocorrido, decidi fazer um áudio contando o caso e o enviar para os grupos dos quais participo, ou seja, para cerca de 700 pessoas, sendo a maioria mulheres. O triste não foi verificar que menos de 10 mulheres responderam a mensagem discutindo o que relatei ou contando experiencias semelhantes, mas que a grande maioria respondeu me enviando mensagens com rosas e cartões elogiosos de felicitações! ASSIM CAMINHA A SORORIDADE, COM PASSOS DE FORMIGA E SEM VONTADE!

sábado, 17 de agosto de 2024

HEI, VOCÊ AÍ! ME DÁ UM DINHEIRO AÍ!

Então eu lhe respondi na bucha: "NADA!”. Foi anteontem isso. Eu estava na sinaleira que fica na esquina da agência Mercês da CEF na saída do Orixás Center e entrada da Av. Sete, quando um morador de rua me perguntou agressivamente: “O que você vai me dar para eu comer?” Felizmente, o sinal abriu logo e fui embora satisfeita tanto por ter sustentado a minha resposta, quanto por não ter recebido um tapa na cara. Mas, Vera, é na sinaleira e com uma pessoa numa situação de pedinte que você deve testar a sua capacidade de dizer "não"? Mesmo se você é tratada com rispidez? Essa resposta também é: "NÃO"!
Mas a questão é por demais polêmica: Devo ou não devo dar esmolas? E a pergunta me é feita reiteradas vezes durante cada santo dia ... a cada novo semáforo tenho que me perguntar qual a melhor forma de lidar com mais esse subproduto da perversa desigualdade social do nosso país. E são tantas as implicações da minha decisão... Tenho que enfrentar a expressão de ódio, quando digo não, a raiva se o valor que dou não é considerado suficiente para quem recebe, corro o risco de ser assaltada, como já fui várias vezes e até temo receber um insulto se o que ofereço não é dinheiro. Sim, há cerca de 30 anos achei ter resolvido o problema, quando passei a carregar uma vasilha plástica com biscoitos no porta-luvas do carro. Dando algo para a pessoa comer, não correria o risco dela estar usando o trocado que lhe dei para drogas lícitas ou ilícitas. Como não fui capaz de sustentar as reações de quem não queria nada além de dinheiro, aposentei a vasilha. Segundo o IBGE, em 2021 houve um aumento de 14,7% no número de moradores de rua em relação ao ano anterior e o total registrado - que certamente é bem menor do que o número real - passou a ser de 222 mil pessoas! O site da SPINVISÍVEL destaca o quanto a situação de rua é complexa e multifacetada e aponta 5 causas que levam as pessoas a serem moradores de rua. Sâo elas: desemprego, conflitos familiares, uso abusivo de drogas, problemas de saúde mental e desigualdade social. Além do item, desigualdade social, considero que três outras causas estão associadas à falta de políticas sociais e consequente desigualdade social. O Estado deveria garantir não só emprego a todos os cidadãos, mas também assistência plena aos usuários de drogas e a portadores de distúrbios psíquicos. Em última análise, até os conflitos familiares podem ter raízes na desigualdade social e suas infinitas facetas.
Abrir o vidro do carro para dar qualquer coisa que seja é muito complicado numa cidade violenta como Salvador, especialmente para uma mulher. Há 18 anos, no caminho para levar meu filho e dois colegas para a escola bem cedinho, resolvi comprar um jornal ATARDE na mão de um rapaz que usava um colete com o emblema desse veículo de imprensa. Ele me entregou o exemplar do jornal e, quando fui pegar o dinheiro na carteira, vendo uma nota de R$50,00, ele enfiou a mão pra apanhá-la e ficamos os dois puxando a carteira até que o sinal abriu e ele saiu correndo com ela. Fui sim, denunciar na sede do Jornal ATARDE, mas eles agiram como se nenhuma responsabilidade tivessem sobre quem está uniformizado trabalhando na venda de seu produto. Noutra situação acontecida nos anos 80, alguém falou algo próximo à janela traseira do carro que minha mãe dirigia, eu abri um pouco o vidro e o rapaz me mostrou um caco de vidro sujo, dizendo ser aidético e ameaçando me cortar. Por sorte, o sinal abriu e minha mãe, que não sabia o que estava se passando, arrastou o carro. Esses são apenas dois dos casos perigosos que vivi por abrir o vidro do carro, tentando ajudar quem está junto a mim, naquela situação de vulnerabilidade e desamparo. Sei bem que, como uma cidadã classe média, não sou eu a maior responsável pela miséria em meu país, no entanto, queria poder fazer algo a mais para minimizá-la. Algo além de doações para a TETO BRASIL, a AÇÃO DA CIDADANIA e MÉDICO SEM FRONTEIRAS. A pobreza bate à minha janela. A pobreza me horroriza, me deixa indignada, ativa o seu senso se solidariedade, mas eu nem sei se abro para ela.

sábado, 10 de agosto de 2024

SÓ NOS RESTA ACOMPANHAR?

Anteontem, o costumeiro engarrafamento que me retarda a ida a qualquer lugar em diração ao centro da cidade, me fez constatar, consternada, que o edificio que está sendo construído no canteiro entre as duas pistas da orla, na av. Otávio Mangabeira, continua crescendo. No dia 13 de junho, fiz uma postagem aqui nesse blog no link , denunciando essa construção que vai/está obstruindo a vista do mar, impedindo a circulação da brisa marinha etc. À época a construção tinha um número de andares que era a metade do que tem hoje, ainda inacabada:
EM 13/06/24
EM 07/08/24 Como escreveu o poeta Valater Hugo Mãe (sim, ele não é só romancista, já gravei um lindo poema desse portguês e ele foi transformado em vídeo por José Mamede e está disponível no meu perfil no insta: @verapassoscoqueiro), o capitalismo é uma fábrica de fazer espanhóis, na verdade é também de fazer a maioria dos brasileiros, uma fábrica de gerar miséria, de constuir feiuras, de acinzentar os nosso dias...

domingo, 7 de julho de 2024

À NOSSA ESPREITA

A morte nem é nossa vizinha. Caso fosse, apenas uma parede poderia nos separaria dela. É a nossa sombra e a gente foge dela como vampiro da cruz! Mas não tem jeito, essa cruz vai chegar seja na sua lápide, caso seja a pessoa seja cristã, seja como cruz no sentido metafórico do termo. Mas a gente sabe que não foge da sombra, nem mesmo nos dias mais nublados. Mas foge, foge e foge. No entanto, há momentos em que a sombra nos tapea, passa a pena na gente e aparece à nossa frente, aparece como enorme tela de cinema 3d. Foi o que se passou comigo há cerca de dois mês... Tenho uma amiga que conheci há mais de 15 anos em uma clínica de tratamento psíquico. Ela foi minha colega em um grupo terapêutico. Ficamos amigas. Tínhamos o mesmo temperamento extrovertido e éramos ambas artesãs. Por algum tempo trabalhamos juntas. Ela me ajudava a bordar camisas customizadas. Eu fazia os desenhos e ambas bordávamos. Ela recebia um valor por cada peça concluída. Não era muito, cada camisa era vendida por um valor muito pequeno. Afinal, quem dá valor a peças artesanais, não é mesmo? Ouvi alguém falar algo muito interessante sobre isso: "Se for feito por homem, é arte. Se for feito por mulher, é artesanato!". Não só do fato de ser um trabalho manual, mas também daí deve vir a desvalorização das peças artesanais. Não se leva em conta o valor do material usado, o tempo gasto para fazer o artigo e, muito menos, o valor intrínseco da criatividade da concepção da peça, no meu caso camisas únicas da marca UM A UM COSTUMIZAÇÂO. Em outros momentos, fui eu a auxiliá-la a fazer enfeites para carnaval, vendidos por ela. Nesse caso, sem pagamento, porque era só um gesto de gratidão pelo que ela havia me ajudado antes. No final do ano passado, uma amiga comum, também pertencente àquele grupo de terapia, recebeu uma mensagem dela lhe contando que havia caído, tinha tido um problema no quadril e na perna, tinha se tornado cadeirante e estava morando em um abrigo. Ficamos ambas muito tristes e preocupadas com essas notícias. Já havia muito tempo que eu a visitara e não tinha ideia de que isso lhe estava acontecendo. Desde então, só tínhamos trocado mensagens pelo whatsapp. Marcamos de ir à casa de repouso no início desse ano. Passado o carnaval, decidimos ir, mas vários contratempos nos impediram, alguns por imprevistos meus, outros da minha companheira de visita. Foi assim que só conseguimos nos dirigir para ir vê-la em maio. Eu saí de Patamares, peguei minha amiga na Graça e fomos até o Abrigo Dom Pedro II, na Av. Luiz Tarquínio, na cidade baixa. Chegando lá, nos informaram que o abrigo já não funcionava naquele local. Segundo o vigilante, a instituição funcionava agora em Piatã em local que ele não sabia precisar. Decidimos atravessar novamente a cidade e fomos até lá. Foi uma maratona achar a nova localização do asilo. Tivemos que pedir informações a mais de 6 pessoas! Quando enfim chegamos, nos informaram que não havia nenhuma mulher com o nome da nossa amiga: Valine. Ligamos para o seu celular para ver exatamente onde ela estava morando. Nada. As nossas ligações não foram atendidas... Como nos disseram que havia outro abrigo na mesma rua, até lá fomos. Novamente não havia ninguém como seu nome naquele local. Cansadas e sem saber por onde continuar a procura, voltamos desanimadas para casa. Tentamos doar as frutas que compramos para o lanche ao asilo público, mas eles disseram que possuem normas que não permitem isso. Desorientada, voltei para casa com um presente, sequilhos e um cartão escrito para a minha amiga com a seguinte mensagem:
Valine, Não estamos sós. Não estamos só com os protetores invisíveis. Estamos juntos como seres em construção, sempre em busca da iluminação. Conte conosco, Beijos carinhosos, Veroca (Era assim que ela me chamava.)
Eu e minha amiga combinamos de procurar as irmãs da desaparecida para sabermos exatamente em que abrigo ela vivia. O sobrenome é Noguerol, lembramos. Então porque o sobrenome delas não era muito comum: Noguerol. Concluímos que o melhor canal para isso seria o instagram e que a tarefa seria facilitada porque o nome não era muito comum. Procuramos a sua irmã mais velha e não a encontramos. Uma semana depois, eu me lembrei do nome de sua outra irmã e mandei mensagem para ela. Esta me respondeu contando em detalhes que nossa amiga havia morrido! Não sei descrever que sentimento me abateu ao receber aquela notícia. Como deve se sentir uma pessoa que sai com presente, cartão e lanches para um alegre encontro com uma antiga amiga e descobre que ela está morta há meses? Não sei descrever. Só sei que senti. O que me resta fazer? Desejar que hoje ela tenha de fato sobre a proteção dos seres invisíveis. Segure firme na mão deles e siga em paz, Valine.

domingo, 16 de junho de 2024

FORRÓ, UM SOPRO DIVINO

 

FORRÓ, UM SOPRO DIVINO


Em um vídeo recém recebido (https://www.youtube.com/watch?v=4UrGfuw6GN4), Dominguinhos nos mostra cinco tipos diferentes de ritmos que são tocados durante os festejos juninos: forró pé de serra, baião, xote, arrasta pé e xaxado. Eu até consegui me lembrar do Falamansa que toca o chamado forró universitário, ao qual ele não se referiu, mas confesso que sequer consegui gravar qual deles é o embalo que tanto gosto de dançar com meu benzinho, seja em uma sala de reboco ou não. Afinal, essa matéria não passa pelo túnel nebuloso do intelecto, desliza pela via verdejante do corpo, esse mistério que me carrega e que insisto em naturalizar como se apenas uma carcaça fosse. Mas ele resiste e sela sensações e memórias: da minha aorta alçando voo enquanto deslizo na pista, conduzida por suas mãos com aqueles seus dedos beijando os meus como colibri em pétala recém orvalhada, do meu quadril que tenta avançar entre suas pernas exatos 2,25cm a cada toque da zabumba... Ahhh, e de sua voz ecoando em meu ouvido, acompanhando a música daquele jeito desafinado e gostoso, distoante não porque é experimentação bossanovista, mas porque é carimbo dessa marca registrada que é só sua. E tem a memória de mim também. De me dizer: “Veja, Vera, ele tá tão feliz!”; “Ele também faz seu movimento pra se roçar em você, e requebra, requebra, requebra macio”; “Sinta bem, registre o momento, guarde a sensação de que ele requebra nesse compasso de alegria que, com a caneta dos pés, traça a frase:  “Olha, que isso aqui tá muito bom, isso aqui tá bom demais...”

E no almoço do dia seguinte, quando nossa filha pergunta como foi a reza pra Santo Antônio e o forró que a seguiu, lembro do Sto Antônio que ele me deu em um nicho com florzinhas de metalacê eo bilhete: "Você tem muito a agradecer a ele!" Mas é nesse momento que ele me desafia: “Qual foi mesmo a música de que eu mais gostei, ontem?” Eu saio correndo desesperada a pesquisar e lhe respondo sem qualquer certeza, achando que dei um chute que no máximo vai bater na trave:

“Debaixo do barro do chão da pista onde se dança, suspira uma sustança, sustentada por um sopro divino...”

Nessa hora ele ri satisfeito comemorando a minha excelente memória e sabedoria sobre esse ser incognoscível que ele é. E é claro que concordo totalmente com essa sua conclusão, afinal não sou boba nem nada! Eu só sei que:

Eu não sei do arrasta pé.

Eu não sei do forró pé de serra.

Eu não sei do baião.

Eu não sei do xote.

Eu não sei do xaxado

Eu só sei que estava lá. E ainda estou!